quinta-feira, 26 de novembro de 2009

O LATIFUNDIÁRIO [1968]

Separaram-se as pálpebras e luziu a pupila do latifundiário. Os desenhos
do teto foram percorridos pela enésima vez. A cabeça do latifundiário
ergueu-se do travesseiro e o corpo da cama. Chinelos. Tapete. Janela.
Sol alto. Céu azul. Calor. Silêncio.

O latifundiário aciona seu mecanismo cerebral.

Relembra as palavras do avô: "Casa quanta caibas, roupa quanta vistas e
terra quanta avistas".

Pondera que foi um tanto além do preconizado pelo velho imigrante que
jaz sob a terra quanta avistava.

Hoje o latifundiário irá sobrevoar sua carne de helicóptero. Sobrevoará
suas frutas, seus legumes e seus cereais. Sobrevoará sua madeira e sua
água. Sobrevoará seu ar e sua fumaça.

Depois pousará em sua terra, concluindo que ela é mais vasta que seu
pensamento, mais extensa que seu conhecimento e mais ilimitada que sua
própria ambição. Em síntese, maior que sua vida.

A seguir, tornará à casa para prover sua necessidade de alimento e
sentar-se-á na cabeceira da longa e deserta mesa. Almoçará com Lucullus.
Trinchará sua carne, amassará seus cereais, cortará seus legumes e
partirá suas frutas. Derramará sua água sobre sua madeira. Soprará sua
fumaça no seu ar.

Depois disso, depositará a inércia de seu corpo sobre uma rede no
alpendre e perderá a noção do tempo.

Acordará com o céu vermelho.

Voltará para dentro e ligará seu vídeo. Apoiará suas costas e nádegas
numa poltrona e deixará que figuras e ruídos o penetrem e entretenham.

Uma súbita interferência silenciará o som e apagará a imagem. O
latifundiário irá sobressaltar-se.

O som então virá da janela, modificado e ampliado. Um zunido insistente,
quase musical.

O latifundiário espiará entre os caixilhos e avistará o OVNI brilhando
no céu já negro e descendo por trás das árvores mais negras.

O latifundiário sentirá medo. Estará só e indefeso à mercê dos viajantes
intergalácticos.

Será inútil buscar refúgio.

O viajante intergaláctico terá desembarcado e estará a caminho. Em
questão de instantes o latifundiário ver-se-á em sua presença.

Será conduzido sem reação para o interior do OVNI que o levará para além
dos limites tridimensionais de sua terra.

O viajante intergaláctico mostrar-lhe-á entretanto a inutilidade da
dimensão e a inexistência do tamanho.

Antes de juntarem-se as pálpebras, a pupila do latifundiário levar-lhe-á
o universo para dentro do globo ocular e o infinito para o interior do
cérebro.

E o latifundiário perderá sua condição e ganhará outra.


NOTA: Glauco Mattoso reuniu em 1975 seus rascunhos de adolescente
(escritos entre 1968 e 1969) sob o título de "Noxo: estórias", cunhando
um vocábulo enigmático que evocava "nexo", "nojo" e "paradoxo", talvez
alusivo ao nonsense que perpassava a maioria daqueles contos breves.
Avulsamente divulgados, no "Jornal Dobrabil" ou em periódicos de grande
circulação, tais exercícios ficcionais serviram de ensaio para
posteriores incursões do autor no terreno da prosa de invenção, também
chamada pelos críticos (como Pedro Ulysses Campos) de "ficção
experimental". Como livro, o conjunto destes textos permanece inédito.
"O latifundiário" saiu, além do JD, na antologia "Queda de braço".

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